quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A TRÓIA ROMANA*







Ainda na continuação da primeira crónica aqui editada, onde se propunha fazer um «Percurso ao longo do Sado», iremos dedicar-nos hoje, de novo, a esse extraordinário lugar que, no dizer de José Leite de Vasconcellos são “... as ruinas de Troia de Setubal constituem um enexgotavel manancial archeologico”.
Regresso, assim, a essa Tróia, a romana, um dos mais importantes centros fabris conserveiros de salga de peixe do Império Romano Ocidental, cujas ruínas se estendem por cerca de 2km ao longo do Sado, evidenciando, como já aqui dissemos, a forte colonização do rio.
O peixe podia ser conservado, quer curado salgado ou seco, quer transformado em pastas, como o conhecido garum, esse molho especial, aproveitamento de vísceras de peixes a que se misturavam mariscos e especiarias, muito apreciado pelos Romanos, que com ele temperavam a maior parte das refeições.
Em Tróia, a par dos grandes tanques de salga de peixe, organizados em unidades industriais, encontramos outros tanques, mais pequenos, que alguns arqueólogos defendem ser para produzir o garum.
Um enorme espólio de artefactos piscatórios, tais como anzóis e pesos de rede, atesta a principal actividade dos habitantes de Tróia.
O produto destas unidades conserveiras deveria ser exportado para outros centros de consumo do Império, nos conhecidos contentores de barro, as ânforas.
O fabrico destes recipientes, actividade subsidiária, neste caso, da transformação do pescado - pois também os há para azeite ou vinho - está claramente demonstrado pela existência de fornos cerâmicos situados nas margens do Sado.
Tróia mantém-se em laboração desde o século I d.C., começando a decair a partir do século IV, se bem que a presença de uma Basílica Paleocristã, construída durante essa centúria ou seguinte e a existência de cemitérios e inscrições funerárias tardias indiciam que o local continuou a ser ocupado.
Para além dos tanques de salgas, está identificada uma área habitacional, conhecida por «Rua da Princesa», umas termas ou balnea, muito possivelmente servindo as fábricas, pois a sua construção aproveita tanques das mesmas, três necrópoles e um Templo Paleocristão que preserva ainda o revestimento com pinturas a fresco.
Se bem que não seja conhecido, muito certamente Tróia teria o seu centro administrativo, o Fórum.
Foi este Sítio Arqueológico identificado, durante séculos, com a Caetobriga nomeada por Ptolomeu, no século II d.C., e no Itinerário de Antonino, no século III, até que escavações mais recentes, já no século XX, puderam revelar a existência de um importante núcleo urbano em Setúbal, passando a assumir-se que essa cidade era efectivamente a Cetóbriga latina.
Gaspar Barreiros é o primeiro autor que faz referência a Tróia, “a qual Troia cuidaram alguns ser Salacia”, e sustenta serem as ruínas de Tróia os vestígios da cidade de Cetóbriga, de cujo nome derivam igualmente o nome da península e o da cidade que se ergue na outra margem - Setúbal. Diz ainda Gaspar Barreiros Setubal “...reteve o nome corrupto de Cetobrica, o qual nome de cetobrica se corrompeu em Cetobra e depoia em Tria onde ela foi”.
Refere-se este autor aos tanques de salga de peixe de Troia como: “salgadeiras em que se curava o peixe”.
André de Resende, escritor e "arqueólogo" quinhentista aí realizou as primeiras pesquisas de que há notícia. Como umas das figuras mais proeminentes do Humanismo Português, não será de admirar a curiosidade de todos os testemunhos do passado clássico poderiam exercer sobre este escritor. Na sua obra De Antiquitatibus Lusitaniae, Liv.IV - “De Cetobriga” retoma a argumentação de Gaspar Barreiros quanto à origem de Cetóbriga
A Escola Historiográfica de Alcobaça retoma a identificação de Tróia com a Caetobriga romana escrevendo também Frei António de Santa Maria que "nos tempos antigos florescera na povoação de Cetobriga a que os moradores da terra chamam Troia".
Muitos autores insistiram nesta identificação de Tróia com a antiga Cetobriga, a exemplo de Duarte Nunes Leão que se lhe refere, na Descrição do Reino de Portugal, como “Cetobriga que vieram corromper o nome de Setúbal para onde passou, foi também situada em uns areais onde chamam agora Troia”, João Batista Lavanha e a Frei António de Santa Maria, Carlos Ribeiro, entre outros. João Batista Lavanha na sua "Viagem da Catholica Real Magestade del Rey D.Filipe II a Portugal", de 1622, diz que:" Setuval. He huma das maiores, e mais assinaladas villas de Portugal, por causa do seu porto formado do Rio Cadão , que alli entra no Oceano, e de huma lingua de terra que o mar ha estreitado. Nesta lingua de terra que fica de fronte da villa, ouve na antiguidade huma povoação chamada Cetobriga .... onde ainda oje se vem os vestigios de tanques em que se salgarão os atuns, e outros pescados, e aparecem as ruinas de outros edificios de aquella cidade, e dellas se tirão estatuas, columnas, e muitas inscripções, que entre outras antiguidades dignas de eterna memoria se conservão na casa do duque de Aveiro. A estas ruynas chama o vulgo Troya com que quer dar a entender que são da povoação que alli ouve".
Em 1895, José Leite de Vasconcellos faz uma profunda reflexão sobre este assunto, assumindo que “ (…) Troia nada mais será do que uma designação litteraria dada anteriormente ao seculo XVI ás ruínas"; para afirmar isto, fundo-me em que não são estas ruínas as únicas assim denominadas: no termo de Chaves ha outras ruínas a que se dá o mesmo nome de Tróia.
Em 1960, José Marques da Costa em “Novos Elementos para a localização de Cetobriga diz a propósito deste assunto “ Caiu, há muito tempo, no campo das hipóteses indefensáveis, não sem que, antes, durante séculos, tivesse sido aceite e divulgada como verdade averiguada e incontroversa. Hoje, vergada sob o peso da provecia idade de quase quatrocentos anos - motivo de aparente autoridade! - não passa de sobrevivência dos estudos arqueológicos do Quinhentismo, incipientes, simplistas e falhos de fundamento”.
Regresso, aqui hoje, a uma «Rua da Princesa», assim denominada porque D. Maria, ainda Infanta, rumando ao Pinheiro, ali passou e resolveu desembarcar para conhecer os restos de Latinos, tendo identificado uma zona residencial; e à Tróia da Real Sociedade Archeologica Lusitana, cujo patrocinador, o Duque de Palmela, permitiu que as escavações aí se incrementassem no século XIX, bem como à dos desenhos das mãos do oitocentista Marques da Costa, que, de tão pormenorizados, até quase poderiam ser efabulação, se bem que se tenham vindo a manifestar de enorme rigor.
Regresso ainda, de novo, aqui, às minhas «Memórias de Tróia», retomando um velho tema que foi adiado, mas agora, certamente, enriquecido porque será mais partilhado.
E aos desenhos de grandes caricaturistas portugueses que colaboraram com José Leite de Vasconcellos, certamente porque era mais uma forma de prover o sustento, desenhos esses, a exemplo do da sepultura de Galla, que o Museu de Arqueologia ainda conserva, bem como às primeiras fotografias que a Arqueologia Portuguesa viu, nas mãos de M. Apolinário.
Regressarei outro dia à Tróia do relevo mitraico, esse deus da Luz associado ao Sol, de origem Persa e trazido pelos militares romanos do Império Oriental, que o Cristianismo acabou por banir no século IV d.C. e cujo culto estava associado a um ritual iniciático da morte do touro.
Pensarei, de novo, sim, nesse relevo mitraico de Tróia que, embora sendo o único exemplar em território nacional, andou por destinos perdidos durante décadas e regressarei outrossim ao templo paleocristão.
E às sepulturas tardias de mansae, exemplares também raros de que apenas existe um paralelo em toda a Península, onde deitados os comensais partilhavam com os seus mortos alimentos e vinho com mel.
Regressei, deste modo, à Tróia de poços, cisternas e reservatórios de água, para servir unidades fabris, bem como aos balneários com os seus tanques tépidos e quentes com os seus mosaicos que, alindando o espaço, permitiriam esquecer cheiros fétidos a peixe e dias suados de labor.
Mas voltarei às unidades fabris que parecem não acabar, quilómetros de praia cheios de cetárias, de que ainda se não conhece bem a organização, muito provavelmente polinucleada.
Novos poços e tanques denunciando que o labor não acabava na zona que agora mais "central", que não é senão a ínfima parte de uma cidade ainda por conhecer. Rumarei ao Columbarium, esse lugar de sossego dos mortos que ocupa o espaço já desactivado de fábricas abandonadas e às sepulturas que se vão juntando em seu redor, transformadas as unidades fabris em lugares de solidão, pela crise anunciada de um Império a ruir. Regressei ainda à sepultura em forma de cupa que se implantou junto às termas e pensei na sepultura da Galla, cujo desenho, dos mais belos que já vi, também se encontra no Museu Nacional de Arqueologia.
Mas regressarei ainda a Tróia para ouvir falar do ilustre escritor de origem lusitana, oriundo de Salacia, Cornelius Bocchus, cuja figura estará como pano de fundo no Congresso a realizar em Outubro próximo.
E voltarei a Tróia, ainda, outro dia, para homenagear todos os arqueólogos que por lá passaram, pois o Sítio é como que a História da Arqueologia em Portugal, bem como desejar à nova equipa que através de iniciativa da IMOAREIA/SONAE aí se encontra actualmente a trabalhar na investigação e valorização do Sítio Arqueológico, exortando, desde já, todos os leitores a visitar este local.
E, por ora, terminarei esta crónica com a descrição da visita a Tróia de Hans Christian Andersen, em 1866, que se refere às escavações efectuadas pela Real Sociedade Archeológica Lusitana no local que teve, inicialmente, o patrocínio de D. Fernando e do Duque de Palmela:
«No cais havia grandes barcos de pesca; quem quisesse, podia dar uma volta e visitar a Pompeia de Setúbal - Tróia, a aldeia de pescadores, enterrada mas parcialmente escavada (...). Voltámos para trás, não em direcção a casa mas rumo ao canal para vermos os restos de Tróia, a cidade enterrada na areia. Foi fundada pelos Fenícios; desde então, os Romanos viveram aqui e recolheram o sal da mesma maneira que ainda hoje é usada, tal como o testemunham as grandes ruínas. Em tempos idos, a entrada domar devia ser para leste; a entrada actual foi quebrada por uma grande inundação, que acabou por a bloquear com areia. Os seus habitantes foram todos obrigados a fugir; acredita-se que inicialmente procuraram as montanhas e fundaram a povoação que agora é Palmela, mas mais tarde dirigiram-se para baixo, para a costa, onde fundaram Setúbal, ainda existente. (...) Onde quer que puséssemos o pé em terra, havia grandes pilhas de pedras amontoadas, restos de lastro de navios que traziam as suas cargas de sal para a baía. Desta forma, havia ali pedras grandes e pequenas vindas de todas as artes do mundo - da Dinamarca e da Suécia, da Rússia e também da China. Podia escrever-se uma longa história sobre elas. (...) Tinham começado a fazer uma grande escavação, que parara devido a falta de meios. Não se tinha ganho muito com isso, mas ainda assim podiam ver-se alicerces de casas, vários pátios, muros altos, restos de um jardim inteiro, com uma casa-de-banho parcialmente conservada, um chão de mosaico e paredes com lajes de mármore. Mesmo dentro de água, havia fragmentos e pedaços de jarros antigos e até grandes muros de pedras».

* por Maria Filomena Barata

1 comentário:

  1. Muito obrigada por terem divulgado o meu texto. Acompanharei este vosso belíssimo blogue.

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