quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

APETITE PELA FOME


* O repto fica lançado para que nos enviem alguns dos vossos trabalhos para as cadeiras do curso, para aqui serem editados e passarem a estar disponíveis para toda a comunidade estudantil, em vez de continuarem a ganhar pó nas nossas prateleiras. Para: eugeniokeiros@gmail.com

Imagine-se a estrada para Lisboa. Com um sentido único: a capital.
Arrastando-se por essa via, uma multidão esfaimada.
Nas bermas, a agonia e a putrefacção.
No ar, o cheiro do desespero, do medo e da morte.
Se o cenário não fosse dos séculos XVI e XVII aqui estaria certamente um grande tema para abrir os telejornais contemporâneos. A imagem de um Portugal esfomeado e desesperado a convergir para a sua capital ou, em alternativa, para a segunda cidade do país, o Porto. Destruindo por completo o quadro dourado dos melhores anos da nação, quando se consumava e confirmava a expansão marítima.
A sociedade fundava-se ainda numa lógica de “dependência pessoal” (1) que era terreno fácil onde podiam germinar problemas sociais agudos. A população portuguesa “vivia em domínios que eram senhorio directo do rei” e “uma grande fatia continuava nas mãos da grande aristocracia próxima da família real e nas ordens militares, à frente das quais se encontravam parentes muito próximos do monarca” (2).
Como destaca Aurélio de Oliveira (3), “mercê de circuntancialismos vários (uns endógenos, outros exógenos) a sociedade agrícola do Antigo Regime viveu, entre nós, num permanente equilíbrio de subsistências”, factor que, segundo o mesmo autor, “transmitiu uma instabilidade e ansiedade permanentes”.
Talvez se possa dizer que, a este nível, não houve qualquer ruptura entre os tempos medievais e os modernos, embora no primeiro período da nossa história a peste a fome – que normalmente surgem associadas – tivessem porventura provocado maiores razias populacionais, como aconteceu em 1371. “Morreu tanta gente de fome como nunca se tinha visto por essa razão (...), foram tantos os mortos que eram enterrados nos adros das igrejas quatro a quarto e seis a seis na mesma cova, encontravam-se os mortos pelas ruas...”, lê-se no “Livro da Noa” de Santa Cruz de Coimbra (4).
Definidas as fronteiras de Portugal, embora não de todo aliviada a pressão do vizinho castelhano, confirmava-se o que Vegécio tinha dito, ou seja, “mais cruel é a fome do que o ferro” (5). Impossíveis de contabilizar os números das vítimas da fome e da guerra mas certamente que a primeira leva vantagem sobre a segunda no campeonato das baixas. Ambas, porém, parecem andar sempre de mão dada.
Segundo o cadastro de 1527-1532, Portugal teria nessa época cerca de 280 mil fogos, a que corresponderiam entre um 1,1 e 1,4 milhões de pessoas. O Entre Douro e Minho parece ser a zona mais densamente povoada, seguido da Estremadura e de Trás-os-Montes (6). Duzentos anos depois, Portugal registava 459 mil fogos a que corresponderia uma população de 1,7 milhões de indivíduos (7). Não é difícil fazer estas contas: em dois séculos, a população residente em Portugal continental cresceu mas a um ritmo muito lento e provavelmente atravessandro períodos deficitários em termos demográficos, também influenciados por vagas de emigração para os novos territórios (ilhas atlânticas, sobretudo).
Não se pretende aqui aprofundar razões que expliquem este fraco crescimento populacional mas parece-nos evidente que as crises provocadas por fomes e pestes, quase sempre cruzadas, muito contribuíram para esta tendência.
Magalhães Basto, na sua “Nova Monografia do Porto”, junta à fome e à peste a questão da guerra, chamando-lhe a “pavorosa trilogia” a propósito do cenário que se viveu no burgo tripeiro em 1577. Aqui com a guerra claramente a definir uma cadeia de acontecimentos funestos.
Em Outubro de 1580, tropas do prior do Crato entram no Porto e seguiram-se 19 dias de vexames e violências. Os castelhanos de Sancho de Ávila chegaram a seguir e não se comportaram melhor. A peste, que já antes por muitas vezes tinha assaltado o burgo, instalou-se então de novo cá dentro e, juntando-se à fome, completou a pavorosa e inserapável trilogia: peste, fome e guerra.
Segundo fontes diversas (8), é possível estruturar uma cronologia desses períodos de carência alimentar e de caos social, numa linha quase ininterrupta de incidências funestas que entram em contradição com alguns relatos de grande prosperidade em diversas regiões do país, como de tal nos dá conta, por exemplo, Rui Fernandes, homem-bom de Lamego, quando considera a sua terra, em 1543, como a mais equilibrada de toda a...Espanha, classificando ainda o vale do Ave como terra “de muito pão e vinho”. O mesmo cenário de abundância é pintado por Duarte Nunes de Leão, na “Descripção do Reino de
Portugal”, em 1610. O que, aprioristicamente, pelo menos introduz neste tema um elemento contraditório ou talvez não. A falta de organização dos meios produtivos parece ter sempre prevalecido sobre as valências das terras e a excelência das suas culturas. Um problema estrutural do Portugal de sempre.
1504 e 1506. Cronista regista “centenas de morte no Alentejo” e a perdas de muitas cabeças de gado devido a um “estranho mal”. Uma praga de gafanhotos fez consideráveis estragos em Évora e Estremoz, obrigando a população “a alimentar-se de tordos e malvas”.

1507. No Porto, durante o mês de Junho, “sentiu-se falta de pão, o que levou o monarca a suspender a casa dos 160 moios que mandara levantar naquela cidade. Apesar de em dificuldades, ao Porto chega o pedido das Caldas de Rainha de 30 moios de trigo, centeio e milhos, assim como 400 galinhas. O pedido é feito pela rainha D. Leonor.
1508. A seca atingiu todo o país e são promovidas procissões pedindo água à Nossa Senhora. De Guimarães saem 500 alqueires de pão para diversos pontos do país.
1519. Uma grande trovoada atinge trás-os-montes, “arrancando casas e arrasando os campos”.
1521. Uma grande fome abala todo o reino e não poupa Espanha e o Norte de África. O alqueire de milho passou de 30 réis para 400 ou mais. 1531. Grande terramoto abala a nação. Morrem milhares de pessoas sobretudo na região de Lisboa. Segundo Serrão, modernos autores garantem “uma visão de tragédia que suplantou a de 1755”. A coroa é obrigada a importar cereais de Aragão, sobretudo para abastecer o Sul do País.
1532. A corte instala-se em Évora – onde permaneceu até 1536 – “devido à peste e às fomes que grassavam que atingiram o reino antes desse ano” (JVS).
1546. A fome atinge as Beiras e o Alentejo, fazendo acorrer à capital “muitos jovens que viviam do roubo e da vadiagem”.
1555. Falta o pão em Coimbra.
1561. Faltam cereais em Évora.
1569. Início da chamada “Peste Grande”, que durou até à Primavera seguinte.
1571. Grande seca na região de Évora.
1574. Escasseia o pão no Entre Douro e Minho. Porto e Coimbra vêem-se invadidas por multidões de esfomeados. Lisboa também.
1580. Dois estrangeiros que viajam por Portugal surpreendem-se com a pobreza da alimentação popular: sardinha salgada e pão escuro. “A riqueza ultramarina não chegava ao campo”, regista José Hermano Saraiva.
1581. Registos de fome em Lisboa, com cereais a serem importados.
1586. Abastecimento de pão e de carnes com graves deficiências na capital do reino.
1596. Primeiro mau ano agrícola de um total de quatro. A fome continua a oprimir o povo em 1597.
1598. Fazem-se diligências para trazer trigo da Alemanha porque “a fome continua a afligir as gentes do reino”. Foi uma fase tão dura que os caçadores e pescadores de Miranda, no extremo noroeste do país, são autorizados a transportarem produtos de Leão e Castela. Regista-se uma “grande mortande” nas Beiras.
1609. Ano estéril. O granizo arrasa o trigo alentejano.
1611. Praga de gafanhotos escurece o céu de Lisboa, dizimando os olivais de S. Bento. Um período de relativo corte nos problemas alimentares agrava-se devido a problemas com o abastecimento cerealífero internacional.
1614. Abundância de pão.
1615. Abundância de vinho. Faltaram vasos para a recolha do mosto e muitas cepas ficaram por vindimar, e as uvas à disposição de todos.
1618. Falta pão.
1620. Volta a faltar o pão.
1621. A capital reclama mais trigo.
1622. Grande fome em Lisboa. O Porto manda 84 moios de centeio. “Foi o mais tenebroso espectáculo de fome que nunca se viu” (9). Na região do Minho “os meses Abril-Maio, meses de soldadura, foram precedidos de uma autêntica praga de roubos, assaltos e agitação social. Pedinchice, vagabundagem e ladroagem, prenúncios de uma agitação social em toda a província, da qual resultou, aliás, um verdadeiro levantamento de esfomeados” (10)
1623. Ano abundante em trigo no Alentejo. Porém, Lisboa e quase todo o reino padeceu de grande fome. “Não havia trigo ou hortaliça em toda a cidade de Lisboa e termo”, relata-se.
1632. Cheias no Tejo destroem colheitas. “Valeu o pão de fora...”, segundo as crónicas.
1633. Apenas um ano depois de uma pequena crise, a coroa decide interromper a importação de cereal da Holanda por ter reservas plenas.
1635. Falta pão no Alentejo e nas Beiras.
1646. Grande abundância de produtos, sobretudo azeite, em Coimbra e Santarém. Seguem-se mais períodos de fartura (1663, 1670, 1681 e 1686). A situação agrícola agrava-se com a Guerra da Restauração.
1709. Grande penúria de cereais. Uma frota preparava-se para zarpar para o Brasil “e toda a gente queria embarcar nela” para fugir da fome (11).
1723. Nova crise de abastecimento de pão.
1738. Grande seca. Que se repete dois anos depois.

A cadência cronológica, que se admite escassa por limitação de fontes, dá-nos, certamente, uma ideia impressiva da pressão que marcou todo o séc. XVI relativamente a períodos de carência de bens alimentares. A primeira metade confirma estas dificuldades mas aí começam a revelar-se alguns sinais de recuperação, com a última metade do século a não registar muitos problemas resultantes de problemas alimentares que tocaram a população portuguesa. “A crise portuguesa traduz-se a diversos níveis, dos quais o mais evidente é, sem dúvida, o económico. Escasseiam os rendimentos, cresce a dificuldade dos povos em pagar as cargas tributárias” (12).
“Sempre é morto quem do arado há-viver”, conforme se lê in “A Romagem dos Agravados”, mantém, contudo, uma ideia estruturante destes tempos durante os quais, segundo José Hermano Saraiva, “a igreja era um caminho para fugir à miséria ou para a evitar”, numa sociedade articulada em três níveis ainda na opinião do mesmo autor: “senhores, lavradores e servidos”.
“Ao longo do Antigo Regime, o sentimento em relação aos pobres não foi sempre igual. Nos séculos XVI e XVII, a visão do pobre como objecto de caridade situava-o no percurso da salvação dos menos pobres ou ricos. Mas, simultaneamente, surgiu a crença de que a pobreza representava um quadro de vícios morais a extirpar, ganhando força esta ideia a partir de Quinhentos” (13).
É importante também procurar na moral uma explicação para um quadro generalizado de pobreza e miséria e o que atrás ficou escrito é, por isso, um pormenor que nos ajuda a perceber o sentimento de um povo e as razões da suas crises de falência, num período em que a esperança de vida rondaria os 30 anos (14).
Como já se disse atrás, as diversas pestes acompanharam os surtos de fome. O problema endémico é tão diverso que daria para um tratado médico. Desde a encefalite letárgica registada sobretudo em 1522 e 1523 a casos de tifo exantemático, passando pelo tabardilho, pela chamada modorra e pela difteria.
As crises seiscentistas são, indubitavelmente, crises de pobreza “que reflectem”, segundo Teresa Rodrigues, “a sucessão de adversidades e o declínio das condições de existência de certos grupos sociais, inseridos numa conjuntura muito mais ampla, de contornos internacionais”, numa lógica em que, nas palavras de Hermano Saraiva, “o país entendia que só a terra oferecia segurança”. Uma segurança comprovadamente falsa, porém campo para a construção de um imaginário colectivo e de uma marca cultural que Hermano Saraiva identifica na figura de “João da Morte” e Gil Vicente em Maria Parda, a famosa personagem vicentina que chora por causa da fome mas sobretudo pela escassez de vinho (15)

Knut Hamsum, prémio Nobel da Literatura, definiu a fome como algo que rói o peito num trabalho “silencioso e estranho, como se uns vinte insectosinhos frágeis inclinassem a cabeça para um lado e roessem um pouco, depois ficassem tranquilos por um momento e recomeçassem, abrissem caminho sem ruído, sem pressa, deixando espaços vazios por toda a parte onde passassem”.

Por Portugal, e pelos portugueses dos séculos XVI e XVII estes insectosinhos passaram certamente.
* Trabalho realizado para a cadeira de História Moderna de Portugal de que é docente Helena Oswald

Referências
1.Teresa Ferreira Rodrigues, “As Estruturas populacionais”, in “História de Portugal” vol. III, pág. 197
2.Teresa Ferreira Rodrigues, “As Estturuas populacionais”, in “História de Portugal” vol III, pág. 201
3. Aurélio de Oliveira, “A Fome e os Motins de 1602”, separata do vol. XLVI da Revista Cultural Bracara Augusta
6 . Teresa Ferreira Rodrigues, “As estruturas populacionais”, in “História de Portugal” vol. III, pág. 202
7. Maria Isabel Monteiro, “A População Portuguesa em 1732”, dissertação de mestrado.
8 . José Hermano Saraiva, “História de Portugal”; Joaquim Veríssimo Serrão, “História de Portugal, vol. III; “Aurélio de Oliveira”, “A Fome e os Motins de 1622”
9 . “Memorial de Pero Roiz Soares”, pág. 450
10 . Aurélio de Oliveira, “A Fome e os Motins de 1622”
11. Carta de José da Cunha Brochado, de 8 de Novembro de 1709.
12. Teresa Ferreira Rodrigues, “As estruturas populacionais”, in “História de Portugal” vol. III, pág. 212.
13. Elisabete Soares de Jesus, “Poder, Caridade e Honra: o Recolhimento do Anjo no Porto” (1672-1800), Porto, 2006
14. Teresa Ferreira Rodrigues, “As estruturas populacionais”, in “História de Portugal” vol. III
15. www.quimera-editores.com/catalogo/vicente/pdf/Maria¬_pdf

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